A Rússia contra o palavrão

Falar palavrão é parte da comunicação mundial desde tempos imemoriais. Vários governos, entretanto, tentaram controlar esse campo do “saber”— às vezes, recorrendo a medidas muito severas!

O palavrão, ao que parece, sempre fez parte da cultura russa, assim como em muitos outros países e línguas. Ele era usado desde o tempo das tribos pagãs eslavas e empregado em rituais de exorcismo de espíritos malignos das casas, por exemplo.

No primeiro registro russo, a “Crônica dos Tempos Passados”, lê-se que, antes do batismo da Rússia, as tribos eslavas “viviam na floresta como qualquer animal selvagem e comiam tudo o que era impuro; falavam palavrões diante de seus pais e suas noras”.

Na tradição cristã ortodoxa russa, falar palavrão é considerado pecado, e acredita-se que aqueles que o fazem estejam possuídos por demônios. Na vida dos santos, é frequente haver episódios em que uma pessoa fala palavrão ou blasfema contra Jesus e começa a ser atormentada por demônios.

A Rússia contra o palavrão
Kira Lissítskaia (Foto: Unsplash; Domínio público)

Embora a Igreja desaprove palavrões, pode-se encontrar palavrões diversas fontes eclesiásticas, entre elas, manuscritos de casca de bétula do século 11 e diversos outros documentos. Até mesmo um membro do clero, o Arcipreste Avvakum (saiba mais sobre esse homem que influenciou toda a literatura russa aqui), usa ativamente em sua autobiografia todo tipo de obscenidade, e essa foi uma das razões pelas quais sua “Vida escrita por si próprio”, redigida no século 17, foi proibida por muito tempo e só acabou publicada no início do século 19.

As primeiras proibições e punições

Muitos príncipes da velha Rus também não aprovavam o “lai”, ou seja, "latir", palavra para linguagem chula. Segundo a crença popular, nos governos de Ivan 3° e Vassíli 3°, falar palavrões em lugares públicos era punível com chibatadas de vidoeiro ou açoitamento. Ivan, o Terrível, realizou uma campanha contra o palavrão por todo o país.

Em 1648, o tsar Aleixo da Rússia emitiu o primeiro decreto proibindo palavrões, especificando uma punição severa. O tsar também perseguiu os “skomorokhs”, ou seja, músicos de rua cujas canções eram altamente irreverentes.

A Rússia contra o palavrão
Kira Lissítskaia (Foto: Unsplash; Domínio público)

Ascensão do palavrão e punições duras

As proibições foram praticamente ineficazes, mas no governo de Pedro, o Grande, a licenciosidade só aumentou, apesar de o tsar ser contra o palavrão. Ao mesmo tempo, ele exigia disciplina estrita no exército, e vários artigos do "Código Militar" de 1715 são dedicados aos palavrões e à punição dos blasfemos, que eram punidos com marcações a ferro quente nas línguas, que chegavam até mesmo a ser cortadas fora.

As penalidades para o uso de palavrões que não eram blasfêmia, mas proferidas "por mero descuido" eram um pouco mais leves. Para a primeira ou segunda ocorrência, o desbocado soldado era trancado na guarita e tinha o pagamento cortado, mas na terceira ele podia ser fuzilado.

A Rússia contra o palavrão
Kira Lissítskaia (Foto: Unsplash; Domínio público)

A partir do século 18, os censores passaram a ficar de olho nas publicações impressas para garantir que nenhum palavrão fosse impresso — e foi assim que surgiu o termo “linguagem incensurável". Ao mesmo tempo, a correspondência pessoal entre pessoas instruídas podia conter palavrões, e o principal poeta da Rússia, Aleksandr Púchkin, é famoso, entre outras coisas, por seus alegres versos obscenos.

Palavrão na URSS

Além de eliminar o analfabetismo, as autoridades soviéticas estabeleceram o objetivo de refinar a língua. No entanto, as obscenidades continuaram a circular entre as massas populares - particularmente nas prisões e campos de trabalhos forçados.

A linguagem grosseira era inadmissível no discurso impresso e público soviético. O Código Penal definia punições específicas para o uso de palavrões, para a demonstração de desrespeito, para o abuso público e para a demonstração de desrespeito ao cidadão ou à sociedade em geral com pena de prisão de seis meses a um ano.

A Rússia contra o palavrão
Kira Lissítskaia (Foto: Domínio público)

Mas as proibições apenas instigavam o interesse das pessoas em explorar a "linguagem popular" – os palavrões estavam na literatura e na música não oficiais soviéticas e eram divulgados por “samizdat”.

Pode-se falar palavrão hoje?

Desde 2014, existe uma lei na Rússia que proíbe linguagem ofensiva no domínio público - na literatura, na imprensa, no teatro e no cinema, em shows e em grandes eventos. E os materiais impressos e audiovisuais que contenham palavrões devem conter uma advertência sobre o fato.

As penalidades por infringir a lei incluem multa e detenção por até 15 dias. Desde 2021, as pessoas também podem ser multadas por falar palavrão na internet na Rússia se o palavrão for direcionado contra outras pessoas de forma abusiva.

A Rússia contra o palavrão
Kira Lissítskaia (Foto: Unsplash; 500px/Getty Images)

Segundo avaliações de especialistas, a quantidade de palavrões na internet só aumentou desde a introdução da proibição. O filólogo Andrêi Scherbakov, do Instituto Púchkin, apoia que o Estado regule o discurso público, mas diz ser impossível atribuir um "membro da polícia linguística" a cada cidadão: "É muito mais importante focar nos esforços para elevar o nível cultural geral", diz.

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