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Velhos Crentes, os ‘protestantes’ russos
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O que distingue a antiga da nova fé na Rússia continua a ser objeto de discussão até hoje. Traços superficiais (com quantos dedos fazer o sinal da cruz, como se curvar, quantos “Aleluias” dizer) são frequentemente citados como as principais diferenças entre os ortodoxos comuns e os “velhos crentes” (em russo, staroobriantsi, literalmente “antigos ritualistas”).
O cisma tem, porém, raízes mais profundas. Meio século atrás, a Igreja Ortodoxa Russa finalmente reconheceu os “velhos crentes” e hoje defende sua reunificação com o ramo principal da fé. Mas, no século 17, a reforma da Igreja pelo Patriarca Nikon foi um verdadeiro choque, que reverbera ainda hoje.
“Nessa época, o apóstata Nikon estabeleceu a fé e as leis da Igreja”, escreveu o primeiro “velho crente” russo, o Arcipreste Avvakum. As reformas de Nikon marcaram o início de uma grande divisão na Igreja Ortodoxa Russa.
Quem foi Nikon?
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Nikon nasceu na região de Níjni Nôvgorod. Antes de se tornar patriarca, foi padre, casou-se — sim, na Igreja Ortodoxa Russa o casamento é permitido aos padres — e constituiu família. Mas, quando seus filhos morreram, ele se encerrou em um mosteiro, onde mais tarde se tornou o abade.
Era costume que os abades recém-nomeados fossem levados ao tsar, para se prostrarem diante dele. Nessa situação, Nikon conseguiu causar uma boa impressão no tsar Aleixo da Rússia, o segundo da dinastia Romanov. Desejando ter Nikon por perto, o tsar o nomeou para uma alta posição em um mosteiro em Moscou.
O objetivo do tsar Aleixo da Rússia era elevar a aceitação do clero pelas pessoas comuns, e Nikon muitas vezes comungava com o tsar.
Em 1652, após a morte do Patriarca Iôssif, o Aleixo da Rússia propôs Nikon como seu sucessor. Depois de o tsar prometer de não interferir nos assuntos da Igreja, Nikon iniciou suas reformas.
O que foram as reformas de Nikon?
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- A alteração de textos sagrados
Uma das maiores preocupações da Nikon eram os livros eclesiásticos. Enquanto era monge, ele trabalhou em várias igrejas por toda a Rússia, e em todos os lugares os textos sagrados eram traduzidos e interpretados de maneiras diferentes. O objetivo da Nikon era unificá-los. Ele tomou por modelo os textos sagrados gregos de Bizâncio, pois foi de lá que a Rússia adotou a Ortodoxia.
Assim, a edição das Escrituras foi a base das reformas. Muitas correções foram feitas. Por exemplo, as grafias russas de “Jesus” e “Cristo” foram alteradas pela adição de uma letra.
- A missa e sua simbologia também sofreram alterações. Uma das mais notáveis e controversas foi a introdução do sinal da cruz de três dedos, em vez dos dois anteriores. Além disso, as prosternações até o chão foram substituídas por reverências até a cintura.
- A procissão festiva da cruz com ícones ao redor da igreja também passou a ser realizada na direção oposta, contra o sol.
- Era preciso pronunciar "Aleluia" três vezes durante o culto, em vez das duas anteriores.
- A quantidade de pão eucarístico também mudou: em vez de sete, apenas cinco eram usados durante a liturgia.
Cisma ortodoxo
Muitos clérigos da alta hierarquia foram contra a reforma. Em resposta, o tsar convocou uma assembleia que ficou conhecida como Sínodo de Moscou de 1654. No entanto, apenas a questão da edição das Escrituras foi resolvida.
Nikon continuou a colocar suas reformas em prática, contando com o apoio do tsar. Quem resistiu foi taxado de cismático e, mais tarde, “velho crente”.
Outra grande assembleia do clero – o Grande Sínodo de Moscou de 1666-1667, do qual até o Patriarca Paisius, de Constantinopla, participou – decretou que os cismáticos eram rebeldes e deviam ser punidos.
Muitos “velhos crentes” foram exilados para a Sibéria — entre eles o já mencionado Arcipreste Avvakum. Ele foi o líder incendiário do movimento dos “velhos crentes” e oponente ativo das reformas.
Foi apenas a intervenção do tsar que salvou Avvakum de um castigo pior, já que ele chamou Nikon de herege e apóstata, culpando-o ainda pela epidemia de peste de 1654-1655 — que ele acreditava ter sido mandada por Deus como punição pelos pecados de Nikon.
A perseguição aos “velhos crentes” foi impiedosa: os padres que pregavam contra Nikon corriam o risco de ter suas línguas cortadas. Mais tarde, Avvakum também foi preso e executado. Ele foi queimado vivo em uma izbá (casa de madeira) junto com outro “velho crente”. Isso levou a uma onda de autoimolações entre os “velhos crentes” em protesto (leia mais sobre isso aqui).
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Seguidores dos “velhos crentes” que não eram membros do clero também foram presos. Uma cena assim é retratada na pintura de Vassíli Surikov “Boiarinia Morozova”, na qual uma mulher da nobreza boiarda é arrastada algemada, mas não se arrepende de sua fé, fazendo o sinal da cruz desafiadoramente com dois dedos.
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Houve casos até de mosteiros inteiros que resistiram às reformas. O que resistiu mais tempo foi o Mosteiro Solovetski: quando as tropas tsaristas chegaram para tomar sua propriedade, os monges os saudaram com armas. Por oito anos, entre 1668 e 1676, o mosteiro ficou sob cerco.
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Nikon se aposenta
A maioria das atrocidades ocorreu depois que Nikon se aposentou. Suas relações com o tsar se deterioram pouco a pouco (principalmente porque Nikon se opunha à transferência de terras monásticas e de sua considerável renda para o tesouro do Estado).
Entre os “velhos crentes” também havia muitas pessoas influentes, e elas ajudaram a virar o tsar contra o patriarca. Diz-se que o próprio Nikon era demasiado arrogante e, segundo os historiadores, tentou colocar a Igreja acima do Estado.
No final das contas, Nikon deixou Moscou e se escondeu em seu próprio feudo, o Mosteiro de Nova Jerusalém, no rio Istra, que ele construiu à imagem e semelhança dos locais sagrados de Jerusalém. O tsar ficou descontente e, naquele mesmo Grande Sínodo de Moscou de 1666-1667, Nikon foi julgado.
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Ele foi considerado culpado por vários crimes e destituído de todos os seus ministérios. Como um simples monge, ele foi confinado no mosteiro Ferapontov e, mais tarde, Kirillo-Belozerski, no norte da Rússia, onde as condições eram muito austeras. Após a morte do tsar Aleixo, o doente e decrépito Nikon foi autorizado a retornar ao Mosteiro de Nova Jerusalém, mas morreu no caminho.
Um século mais tarde, Catarina, a Grande repudiaria Nikon, acusando-o de querer se tornar um papa ortodoxo e subjugar o tsar. “O sinal da cruz de três dedos nos foi imposto pelos gregos por meio de imprecações, tortura e sentenças de morte”, disse ela.
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