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Evfrosínia Kersnóvskaia: crônica do Gulag em desenhos
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Nesses desenhos de Evfrosínia Kersnóvskaia, feitos no estilo simples popular russo chamado “lubok”, que quase parecem feitos por uma criança, pode-se ver temas nada infantis: deportação para a Sibéria em vagões de gado, abuso noturno na prisão, interrogatórios, cadáveres, torres de observação dos campos e trabalho duro nas minas. Kersnóvskaia sobreviveu cerca de 12 anos nesses campos de trabalhos forçados.
Em seus cadernos escolares, ela escreveu e esboçou em detalhes a crônica do Gulag, o sistema de campos de trabalhos forçados para presos políticos e cidadãos que se opusessem ao regime na União Soviética.
Em torno de 2.200 páginas manuscritas e quase 700 desenhos se tornaram uma das evidências mais vivas dos horrores que centenas de milhares de pessoas experimentaram durante a época soviética.
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“Quanto vale uma pessoa” é o título de seu livro de memórias, escrito na década de 1960, porém publicado pela primeira vez apenas após a desintegração da URSS, na década de 1990. “Uma pessoa realmente vale tanto quanto sua palavra”, responde a autora à sua própria pergunta.
Quem é Evfrosínia Kersnóvskaia e como ela acabou nos campos?
Kersnóvskaia nasceu em 1908, em uma família nobre de Odessa. Durante a Guerra Civil, seu pai foi preso, porém milagrosamente libertado. Pouco depois, toda a família fugiu por mar para a Romênia. Nas décadas de 1920 e 1930, a família vivia tranquilamente na Bessarábia romena. Evfrosínia recebeu uma excelente educação e conhecia vários idiomas.
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A jovem conseguiu construir e estabelecer o trabalho de uma fazenda na propriedade da família; ela mesma trabalhava no campo e cuidava do gado.
O idílio terminou, porém, em 1940 — quando a Bessarábia passou a fazer parte da URSS. Com a chegada das tropas soviéticas, começaram também as repressões. Camponeses ricos foram desapropriados e deportados.
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A família perdeu a sua casa. Evfrosínia mandou a mãe para a Romênia, mas decidiu ficar na fazenda, pois ela não poderia deixar o negócio e o gado.
No entanto, em pouco tempo, junto com centenas de bessarabianos, ela foi colocada em um vagão de gado e levada para a Sibéria sem explicação.
Campo, fuga, prisões e minas de Norilsk
Começou uma longa viagem; primeiro de trem, e depois em uma barcaça ao longo do rio. Kersnóvskaia e seus companheiros de viagem foram levados para um assentamento especial. Todos os demais estavam desesperados, mas ela parecia otimista: “Afinal, havia trabalho a ser feito! E quando se tratava de trabalho, eu tinha confiança em mim”, escreveu.
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Ela ainda não entendia, porém, que não se tratava de um emprego, mas de um trabalho humilhante realizado por escravos.
Kersnóvskaia foi fechada em um barracão frio com percevejos. Sem utensílios, comia só mingau que recebia dos guardas e era enviada a trabalhar até a exaustão no campo madeireiro. Sem suportar essa humilhação por tanto tempo, decidiu fugir do campo. “Melhor morrer em liberdade do que em cativeiro”, escreveu. Durante seis meses, a jovem vagou pela taiga siberiana, quase morrendo de fome e frio, por conta das geadas.
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Evfrosínia acabou sendo detida pela polícia e foi sentenciada a mais 10 anos em campos de trabalhos forçados. Mais tarde, ela recebeu outra sentença por palavras descuidadas.
“Tinha que ficar o dia todo no chão de pedra coberto de água, descalça, quase nua, apenas com roupas íntimas, porque não havia lugar para secar as roupas, e era impossível jogá-las para secar: o barracão estava tão bagunçado que poderiam roubar até os panos para os pés”, escreveu ela sobre as condições.
Evfrosínia foi várias vezes transportada para diferentes campos e, no final, acabou no extremo norte soviético, em um campo perto da cidade de Norilsk, onde as condições eram as mais cruéis de toda a URSS.
Ali, Kersnóvskaia pediu para trabalhar em uma mina de carvão, ou seja, escolheu o trabalho mais duro. Ela estava certa de que esse tipo de trabalho a salvaria, e os “chefes” seriam mais favoráveis a ela.
Como permanecer humano no campo
Uma mulher nobre, intelectual e de honra, Kersnóvskaia surpreendia todos com sua coragem e humanidade. Ela discutia sem medo com os guardas, com os chefes dos campos e tentava defender os direitos humanos dos detidos.
Talvez tenha sido a sua personalidade não soviética, a falta de hábito do modo de vida soviético e do oportunismo que a ajudaram a sobreviver.
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Por exemplo, durante uma das transferências de um campo para o outro, quando os guardas lhes recusaram água, embora o trem estivesse bem próximo ao lago, Evfrosínia foi a única que não teve medo de fazer uma reclamação. Durante a mesma viagem, uma mulher deu à luz no vagão vizinho e era necessário lavar a criança. Os guardas não permitiram pegar água no lago. À noite, ela abriu a trava do vagão com um guarda-chuva e correu para o lago com um balde. Isso lhe custou dias na solitária e algemas.
Ela se recusava a comprometer seus princípios, ajudava outros prisioneiros e sempre falava na cara dos investigadores e comandantes tudo o que pensava.
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Kersnóvskaia nunca escondia comida, como era costume no campo, e a dividia com os famintos. E ajudava a enterrar os mortos quando a equipe do necrotério não conseguia dar conta. No dia da libertação, ela usou todo o dinheiro que recebeu para comprar tortas para a brigada dos prisioneiros.
Libertação e memórias
Evfrosínia foi libertada em 1952, quando tinha 44 anos. Na época, tinha direitos limitados e não podia viajar para longe do local de detenção. Ela acabou indo trabalhar em uma mina, porém desta vez voluntariamente, com a esperança de que se aposentasse em breve e pudesse viver em paz.
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Ela conseguiu se encontrar com a sua mãe apenas em 1958, após 18 anos de separação. Não foi fácil, a mãe vivia na Romênia, não tinha como receber informações sobre a filha e tinha certeza de que Evfrosínia já estava morta.
As duas conseguiram se reunir permanentemente apenas em 1961, quando se estabeleceram em uma pequena casa na cidade de Essentuki, no Cáucaso soviético. Hoje em dia, existe na cidade um museu dedicado a Kersnóvskaia.
Foi a mãe de Evfrosínia que lhe pediu que escrevesse um livro sobre a sua vida. Ela começou o trabalho em 1964, quando sua mãe faleceu.
Na década de 1980, suas memórias foram distribuídas em esquema de “samizdat”, ou seja, cópias caseiras de livros proibidos. Os desenhos foram publicados pela primeira vez na revista “Ogoniok” apenas em 1990.
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O trabalho duro nas minas afetou a saúde da escritora, que passou a andar de muletas desde o início dos anos 1970 até sua morte.
Evfrosínia Kersnóvskaia morreu em 8 de março de 1994.
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