
O mistério de “O Conto da Campanha de Ígor”: o épico mais intrigante da antiga literatura eslava

A história da literatura russa tem a sua própria “questão shakespeariana”. Assim como os pesquisadores do mundo anglófono discutem há séculos se o filho de um luveiro e ator provinciano poderia ter escrito “Romeu e Julieta”, “Hamlet" e “Sonho de uma Noite de Verão”, os eslavistas travam há duzentos anos debates acalorados em torno de uma obra da literatura russa antiga do século 12. Trata-se de “O Conto da Campanha de Ígor”, também traduzido como “Canção da Campanha de Ígor” para português, que narra a malsucedida expedição do príncipe Ígor Sviatoslavitch, o Bravo, de Novgorod-Sieversky, contra os polovtsianos, em 1185.
Um enigma literário entre fogos, cópias e dúvidas
Se ninguém duvida da autenticidade das obras de Shakespeare — embora a figura do próprio autor ainda gere questionamentos —, o mesmo não se pode dizer sobre “O Conto da Campanha de Ígor”. O manuscrito original, descoberto pelo colecionador de antiguidades conde Aleksêi Mússin-Púchkin no mosteiro de Kirillo-Belozérski, foi destruído no incêndio de Moscou em 1812, juntamente com a maior parte de sua coleção. Restaram apenas duas cópias. Uma delas é luxuosa, feita por escribas profissionais na década de 1790 para a imperatriz russa Catarina 2ª.

A outra é a cópia feita pelo próprio Mússin-Púchkin, um pouco antes da cópia de Catarina, e foi usada na preparação da primeira edição impressa do poema épico em 1800. Esta versão é importante para comparação com a cópia da imperatriz e para o estudo da história editorial da obra. Ela contém variações e anotações que não aparecem na cópia posterior, refletindo o trabalho dos primeiros editores.
Há também trechos extraídos da obra original feitos pelo historiador Nikolai Karamzin, que descreveu o poema e fez um resumo da obra no seu famoso trabalho “História do Estado Russo”. Esses registros confirmam que o historiador teve acesso ao manuscrito original antes de sua publicação oficial e que o poema realmente existiu antes do incêndio.

Ainda assim, as dúvidas sobre a autenticidade de “O Conto da Campanha de Ígor” surgiram quase imediatamente após sua publicação. Diversos pesquisadores alegaram que não era uma obra do século 12, mas uma falsificação do século 18. As principais razões dessas suspeitas eram as seguintes:
1) Escrito de forma demasiadamente bela. O estilo e a linguagem poética e imagética do texto pareciam refinados demais para uma obra tão antiga. Os pesquisadores duvidaram da possibilidade de descrever acontecimentos com tanta beleza nos tempos antigos.
2) Formas linguísticas incomuns. Certas palavras e construções pareciam incompatíveis com o que os estudiosos do século 18 conheciam do eslavônico antigo ou do russo medieval.
3) Imprecisões históricas aparentes. Detalhes sobre a campanha de Ígor, outros príncipes e nomes geográficos não correspondiam ao que se sabia na época, embora muitos desses “erros” tenham sido posteriormente explicados e corrigidos.
4) Único manuscrito existente. A ausência de menções em outras crônicas medievais levou muitos a pensar que o texto teria sido criado às pressas durante a onda patriótica do século 18, com o propósito de forjar um “épico nacional”.
No entanto, da mesma forma que a “questão shakespeariana” acabou se resolvendo em favor de William Shakespeare, os estudos posteriores de “O Conto da Campanha de Ígor” provaram sua autenticidade.
Três provas da autenticidade do épico russo
1) A descoberta, no século 19, da obra “Zadonshchina” — outro texto da literatura eslava antiga, escrito no final do século 14 ou início do 15, provavelmente por Sofônios da cidade de Riazán. A obra exalta a vitória de Dmítri Donskôi sobre cã Mamai, poderoso comandante militar da Horda Azul, e tem citações diretas bem como empréstimos estilísticos e figurativos de “O Conto da Campanha de Ígor”. Isso indica que o autor conhecia o texto e o utilizou como referência. Além disso, o idioma da “Zadonshchina” é visivelmente mais moderno do que o do “Conto”.

2) A descoberta, no século 20, de manuscritos em cascas de bétula, ou seja, documentos escritos em pedaços da camada interna da casca da árvore de bétula, que era comumente utilizada para escrita antes da produção em massa de papel. Esses manuscritos da Rússia Antiga revelaram a existência de palavras, formas gramaticais e expressões utilizadas no “Conto” que antes da descoberta eram considerados improváveis ou inexistentes na linguagem eslava no século 12.

3) As realidades históricas descritas na obra. Os historiadores conseguiram encontrar muitas provas dos detalhes descritos no “Conto”. Diversas crônicas e documentos dos séculos 12 e 13 confirmam a autenticidade da campanha de Ígor, genealogias dos príncipes, referências geográficas, costumes e crenças.

Dessa forma, o consenso atual entre os pesquisadores é de que “O Conto da Campanha de Ígor” é, sim, um autêntico monumento literário eslavo do século 12 e não uma falsificação posterior.
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