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O monstro da jarra: como o kombucha se tornou o principal superalimento russo? (FOTOS)
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Praticamente todos os lares soviéticos tinham um cultivo de kombucha: uma coisa feia e viscosa que flutuava dentro de potes de três litros em um líquido cor de ferrugem. Aquilo crescia e ficava com o diâmetro do frasco em apenas uma semana e, se você “alimentasse” periodicamente a tal coisa com açúcar, ela podia viver anos a fio!
Bichinho de estimação viscoso
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“Não é só que eu não possa beber esse cogumelo: não há dinheiro no mundo que me faça tocá-lo. Eis o porquê: eu tinha cinco anos e estava na casa da minha avó favorita. Ela estava na cozinha, fazendo alguma coisa e, a certa altura, pegou o pote com aquele maldito cogumelo e começou a descascá-lo, retirando as camadas de cima da monstruosidade. Eu estava perto. Mas minha avó era uma grande brincalhona, então, o que ela fez para entreter a criança? Ela pegou uma das camadas, colocou no rosto e se virou para mim... Ela estava mais feia que o Freddie Krueger! Ela começou a correr atrás de mim de brincadeira. Ainda me lembro de como ela tentou me fazer sair do armário em que eu me tranquei.”
Esta é apenas uma das milhares de histórias que os russos contam on-line sobre o kombucha. Havia quem o adorasse, mas também quem não pudesse vê-lo.
Acredita-se o kombucha tenha surgido na China, há dois mil anos, antes de se tornar popular mundo afora. É fácil cultivá-lo: começa-se com chá adoçado, adicionando depois a “zooglea” - uma massa bacteriana viscosa que adora umidade e fluidos.
O teor de cafeína e açúcar no chá atuam como um ambiente de crescimento para as bactérias e leveduras. Quanto maior a colônia, mais “pegajoso” esse corpo se torna. O recipiente é deixado fermentar por até uma semana, período em que o chá se transforma em algo mais doce e mais pungente (e, às vezes, alcoólico).
A massa é então extraída e o líquido, despejado em garrafas. O kombucha pode viver por muito tempo, desde que chá fresco seja adicionado uma vez por semana.
A maneira mais simples de obter um novo kombucha é transferir o líquido para outra garrafa (com a colônia, consequentemente, formando uma nova zooglea), ou cortar um pequeno pedaço e transferi-lo para outro recipiente com chá adoçado. A zooglea muitas vezes era transferida, como uma criatura nômade, entre amigos e parentes – e, como um animal de estimação, exigia cuidados.
“Este cogumelo chegou em nossa casa por cortesia da minha tia, e veio com uma nota anexa. Tínhamos que dar um nome para ele, e havia uma lista de sugestões. O cogumelo da minha tia se chamava 'Bobby'. As camadas recém-desenvolvidas deviam ser distribuídas entre os vizinhos junto com a nota”, lembra o internauta de apelido “Prostoludinka”.
Mitos do cogumelo
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Nos tempos soviéticos, a bebida adquiriu a reputação de ser um “superalimento” – algo cheio de benefícios para a saúde. Entre eles, estavam a digestão melhor, os efeitos contra a ressaca, o melhor funcionamento do sistema imunológico, a capacidade de evitar diabetes e gota, de combater neuroses, reumatismo e hemorroidas, os benefícios de desintoxicação, os probióticos e até as propriedades de combate ao câncer.
Na realidade, quase nenhum desses benefícios foi provado cientificamente. Verdade é também que houve pesquisas e os resultados eram animadores, mas a maioria deles foi adquirida in vitro - ou seja, os testes foram feitos em culturas de células, ou, no máximo, com ratos usados como cobaias.
Por exemplo, os experimentos com ratos revelaram que o consumo regular de kombucha reduz a toxicidade no fígado resultante de produtos químicos — às vezes, em até 70%. Algumas pesquisas confirmaram propriedades antimicrobianas e antioxidantes, e até mesmo anticancerígenas – mas só quando testadas em culturas de células.
Ratos com diabetes, enquanto isso, experimentavam um metabolismo de carboidratos mais lento, reduzindo o açúcar no sangue. Quanto às propriedades de combate ao câncer, testes de laboratório mostravam que o kombucha ajudava a conter o crescimento e a disseminação de células cancerígenas graças a uma alta concentração de polifenóis e antioxidantes que, segundo os cientistas, bloqueiam a mutação genética.
Não se sabe, cientificamente falando, porém, se sequer metade desses benefícios se aplica ao organismo humano. Além disso, são conhecidas situações em que o kombucha pode ser prejudicial.
Cogumelo assassino?
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Em 1995, duas mulheres no Estado de Iowa, nos EUA, adoeceram gravemente após consumirem kombucha caseiro diariamente por dois meses. Uma delas morreu. Não há evidência direta de que o kombucha tenha sido a causa, mas ele poderia ter tido papel fundamental, de acordo com o Departamento de Saúde do Iowa.
Há contraindicações ao kombucha: ele não deve ser consumido por pessoas com problemas renais ou pulmonares, pois elas correm risco de ter uma acidose - um excesso de ácido no sangue causado pelo cogumelo. Além disso, o microbioma da bebida pode levar à infecção de pessoas com sistema imunológico comprometido.
Aleksandra Razarenova, membra da União Russa de Nutricionistas, diz: “Eu recomendaria um cuidado especial ao ingerir o kombucha a pessoas com acidez estomacal elevada ou doenças gastrointestinais; minha contraindicação também se estende a mulheres grávidas ou amamentando.”
Popularidade renovada
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Mas o culto soviético do kombucha não se deve apenas a mitos: antes de tudo, ele é realmente uma alternativa saudável aos sucos e refrigerantes.
Apesar de o kombucha se alimentar de açúcar, seu teor final na bebida é extremamente baixo. Um copo contém, em média, apenas 30 calorias e entre 2 e 8 gramas de açúcar. Além disso, a mistura contém vitaminas B e, como qualquer bebida fermentada, é rica em bactérias do leite.
Mas a reputação do kombucha foi manchada pela economia de mercado da década de 1990, em meio a uma ampla transição para os refrigerantes. Por um tempo, o kombucha tornou-se um anacronismo soviético, enquanto sua nova popularidade na Rússia foi provocada apenas mais tarde por um boom mundial — já que no resto do planeta passou a representar a alimentação saudável.
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Além disso, a bebida ganhou destaque mais uma vez em 2016, totalizando US$ 1,6 bilhão em vendas em todo o mundo. Em 2022, esse número deve saltar para os US$ 2,5 bilhões. A substância assume muitas formas: desidratada, em cápsulas etc.
Hoje, o kombucha não é tão popular na Rússia (pelo menos não tão popular quanto era durante a URSS), mas pouco a pouco está ganhando fama novamente. Há um número crescente de sites com instruções de preparação (que vendem as chamadas caixas de kombucha) e até fãs-clubes.
Também é possível encontrar a próprio zooglea nas prateleiras de lojas populares, complementada com instruções também. On-line, também é possível ler russos estão compartilhando suas experiências e conhecimentos com o kombucha - especialmente sobre aquilo que pode matar o cogumelo.
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São coisas como: "Atenção: sob nenhuma circunstância você deve jogar o cogumelo em água quente, pois ele morrerá imediatamente" ou ainda “O chá deve ser muito bem filtrado. Se o kombucha entrar em contato com pequenas partículas de folhas de chá, a mancha pode desenvolver algo semelhante à necrose.”
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