O que está acontecendo na pintura “Inauguração da casa”, de Petrov-Vódkin?

Galeria Tretiakov
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“Inauguração da casa (Petrogrado operário)” é considerada uma de obras mais humanas e ambíguas do pintor russo-soviético Kuzmá Petrov-Vódkin. “Gente simples e boa” — assim o artista descrevia os heróis que comemoram a mudança para um novo lar às margens do rio Neva. Mas a grande exposição para a qual o quadro foi criado o recusou: o tema parecia ambíguo demais para a época.

Em 1937, o pintor, artista gráfico e teórico de arte russo Kuzmá Petrov-Vódkin (1878-1939) foi contratado para pintar uma obra sobre a Guerra Civil para Exposição Pan-Soviética “Indústria do Socialismo”.

O partido queria que o artista retratasse o momento em que antigos proprietários são expulsos de um apartamento e, em seu lugar, se instalam novos moradores — os cidadãos soviéticos.

Mas o artista não gostava da ideia de retratar os “burgueses” como vilões óbvios. Por isso, decidiu transferir o conflito para fora da cena e concentrar-se no que veio depois. Assim surgiu, em 1937, “Inauguração da casa (Petrogrado operário)”.

Um apartamento com vista para o Neva

“Na ampla sala com janelas para o rio Neva reuniam-se umas 20 pessoas: os anfitriões e seus convidados, gente simples e boa. Nos rostos, nas roupas e nos gestos, mostro as marcas da Guerra Civil recém-terminada e o início da nova construção socialista”, explicou Petrov-Vódkin.

Galeria Tretiakov
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A cena da pintura se passa em 1922. A Guerra Civil entre os brancos e bolcheviques chegara ao fim e assim começava a vida em paz. Uma família operária muda-se para um apartamento no centro de Petrogrado (atual São Petersburgo). Os antigos proprietários desapareceram, provavelmente já haviam emigrado da Rússia Soviética. Deles restam apenas as pinturas nas paredes, talvez até um retrato da antiga proprietária e um papagaio numa gaiola, que o menino alimenta com um torrão de açúcar.

Galeria Tretiakov
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O apartamento amplo foi transformado em um “kommunalka”, ou seja, um apartamento comunal. Pela janela vê-se a Fortaleza de São Pedro e São Paulo: se compararmos com um mapa da cidade, o apartamento ficaria na rua Millionnaia ou no cais do Palácio, ou seja, bem ao lado do Palácio de Inverno. É o coração da cidade, onde antes moravam os membros da família imperial, nobres, diplomatas e a alta burguesia.

Um novo cotidiano

Na sala estão muitas pessoas, quase não há espaço para se mover. À mesa, a conversa é animada: os convidados parecem até ter esquecido da comida. Um jovem fala com entusiasmo, gesticulando. Atrás dele, um homem de jaqueta uniforme escuta atentamente. Ao seu lado está o dono da casa, de camisa branca e cachimbo na mão. Perto deles, em uma poltrona vermelha, sua esposa amamenta o bebê, enquanto conversa com uma jovem de lenço vermelho e cigarro na mão.

Galeria Tretiakov
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Ao fundo, um soldado ferido tenta cortejar uma moça tímida de vestido rosa. Provavelmente voltou há pouco da frente; o braço está imobilizado e no peito brilha a Ordem da Bandeira Vermelha. Enquanto isso, o comissário escuta atentamente seu interlocutor, um senhor de válenki (botas de feltro russas).

Galeria Tretiakov
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Os novos moradores já começam a se adaptar: sobre o piso de parquet há um tapete rústico; além das cadeiras elegantes estão banquinhos grosseiros; no lugar do ícone, resta apenas um galho de salgueiro.

Uma chaleira esquenta sobre um fogão a lenha — o aquecimento central em Petrogrado não funcionava na época. O vidro quebrado da janela está tapado com madeira compensada.

Sem insinuações

Parecia que Petrov-Vódkin havia realizado plenamente sua ideia: a guerra acabou, o país segue para um futuro de paz. Mas o comitê da exposição rejeitou o quadro três vezes — o que chocou profundamente o autor.

O problema não era tanto a obra, mas a conjuntura da época. Aqueles que ontem se mudavam para os apartamentos “liberados” poderiam, no dia seguinte, ser rotulados de inimigos do povo e desaparecer sem deixar rastros. Por isso, a cena de uma inauguração de casa parecia ambígua demais. O partido não tolerava duplos sentidos.

Museu Russo Petrov-Vódkin. Autorretrato. 1929
Museu Russo

A exposição pan-soviética “Indústria do Socialismo” teve início na primavera de 1939, em Moscou, mas Kuzmá Petrov-Vódkin não chegou a ver a abertura, pois faleceu em 15 de fevereiro de 1939.

O público soviético viu a “Inauguração da casa” pela primeira vez apenas em 1965.

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