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Como é a vida dos alemães da Rússia que moram às margens do Volga?
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Andamos por uma cidade com ruas tão retas como se fossem desenhadas por um ancinho, placas de logradouros e lojas em cirílico gótico, casas de tijolos maciços com telhados de quatro águas e chaminés fumegantes, além de uma antiga igreja luterana na praça central. A cidade de Marks, no norte da região de Saratov, foi fundada em 1765 por colonos alemães que viajaram à distante Rússia a convite da imperatriz Catarina, a Grande.
Em diferentes períodos de sua história, a cidade foi chamada Ekaterinenstadt, Baronsk, Marxstadt (em homenagem a Karl Marx) e, depois, simplesmente Marks. Em 1918, os bolcheviques mudaram os nomes de lugares “burgueses” para outros, soviéticos, e Ekaterinenstadt tornou-se Marxstadt.
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No entanto, em 1942, um ano depois que a Alemanha nazista invadiu a URSS e os alemães do Volga foram deportados para a Sibéria e o Cazaquistão, a cidade começou a ser chamada simplesmente de Marks. Antes da deportação, quase 90% da população local era alemão e o restante, russo.
Hoje, a proporção é exatamente o oposto (a população atual de Marks é de cerca de 30.000 pessoas). Embora os alemães do Volga tenham recebido o direito de retornar a esses territórios há muito tempo, poucos voltaram. Alguns ficaram na Sibéria (existem até mesmo duas regiões étnicas alemãs lá hoje), e outros resolveram se mudar para a Alemanha.
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No entanto, entre os seus descendentes há também aqueles que não só regressaram à terra natal, como também procuram reavivar e preservar o patrimônio cultural e histórico distintivo das antigas povoações.
Igreja com vista para Lênin
“Meus avós eram de Mariental (a partir de 1942, a aldeia de Sovietskoie). Eles sempre tiveram boas lembranças do Volga e queriam voltar para lá”, diz Elena Kondratievna Geidt, que dirige uma associação pública de alemães russos no distrito de Marks há quase duas décadas.
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Nos tempos soviéticos, sua grande família viveu toda no Cazaquistão, mas também preservou ali as tradições dos alemães do Volga. “Sou católica desde a infância, embora na minha juventude soviética tenha sido secretária da organização Komsomol. Em casa, porém, observávamos os ritos católicos e celebrávamos nossos feriados, porque as igrejas eram proibidas”, diz Elena.
Ela é uma das poucas pessoas que ainda falam o antigo dialeto dos alemães do Volga, embora não tenha com quem usá-lo.
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“Em meados da década de 1980, retornamos ao Volga. Na época, meus pais, assim como irmãs e irmãos, partiram para a Alemanha, enquanto meu marido e eu ficamos”, conta Elena.
Em 1972, o direito à livre circulação foi restaurado a todos os alemães deslocados na URSS e eles foram autorizados a retornar à terra natal, mas não ao local exato onde moravam (presumivelmente, para evitar reivindicações de propriedade).
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Na década de 1980, nos anos finais de socialismo e de atitudes mais liberais, os alemães começaram a retornar à região do Volga. No entanto, nem sempre foram bem recebidos pela população local, e muitos alemães do Volga aproveitaram-se da lei de repatriados, adotada na RFA em 1953, e da Perestroika que se iniciava na URSS e partiram para a Alemanha.
“Quem saiu conhecia bem o idioma e se integrou ao ambiente alemão. Enquanto eu realmente me apaixonei pela região do Volga, principalmente de Marks, e fiquei”, conta Elena.
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Quando os alemães se estabeleceram originalmente nestas terras vazias, há tanto tempo, seus assentamentos foram claramente divididos em luteranos e católicos. Marks era a única cidade onde os membros das duas comunidades viviam lado a lado: a cidade também sempre teve uma igreja luterana e uma igreja católica.
É desnecessário dizer que o período soviético deixou sua marca na aparência histórica da cidade: agora, em frente à igreja luterana, há um monumento a Vladímir Lênin e a sede da administração local. Atrás deles, já nos anos pós-soviéticos, foi erguido um monumento a Catarina, a Grande — que mais parece pré-revolucionário.
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A parte do legado original dos alemães do Volga que sobreviveu melhor é a culinária: os moradores locais, tanto russos quanto alemães, ainda cozinham kräppel, kraut und prai e, claro, a tradicional torta rivel kuchen polvilhada com farinha misturada com açúcar e manteiga.
Entusiastas da história
“No início dos anos 2000, éramos uma comunidade fechada. Estudávamos a língua, cantávamos e a geração jovem de hoje nem conhecia a história alemã de Marks: eles achavam que todos esses prédios tinham sido construídos por prisioneiros de guerra alemães... Começamos a trabalhar com historiadores locais, ganhar bolsas e publicar livros”, conta Elena.
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Assim, pouco a pouco, os moradores locais passaram a valorizar os alemães do Volga como grupo étnico na Rússia e passaram a apreciar sua ética de trabalho e cultura.
“Temos aulas de alemão ministradas por um professor da Alemanha, conjuntos alemães e cooperamos com todos os centros culturais alemães na região de Sarátov — há 22 desses centros aqui. Esses projetos sociais não são apenas para alemães, mas para todos os moradores da cidade”, diz Elena.
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“Claro, eu sabia sobre os alemães do Volga desde a infância, minha mãe morava na vila de Niedermonjou (atual Bobrovka), no distrito de Marks”, diz Alexandr Chpak da região de Volgogrado. “Mas não havia uma única menção à República dos Alemães do Volga [nos primeiros anos soviéticos e antes da deportação, havia uma entidade estatal chamada República Socialista Soviética Autônoma dos Alemães do Volga, que ocupava parte das regiões de Volgogrado e Sarátov contemporâneas, ao longo do Volga]. É por isso que eu tive que coletar informações pouco a pouco.”
Em 2009, Chpak fez um tour pelos antigos cantons alemães (como os distritos alemães eram chamados nos primeiros anos soviéticos) e compilou um mapa interativo (disponível aqui) listando antigos nomes de lugares que datam do Império Russo e suas versões atuais. Assim, Basel tornou-se Vassilievka, Strassburg tornou-se a vila de Romachki e Mannheim tornou-se a vila de Marinovka.
Zurique nos rincões da Rússia
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As antigas aldeias alemãs se estendem ao longo do Volga por centenas de quilômetros. Mas hoje há ali uma estrada, assim como postos de gasolina e lanchonetes. Há 250 anos, ali só havia “estepe por toda parte”, como canta uma famosa canção russa.
As ex-colônias alemãs têm dezenas de antigas igrejas luteranas e católicas, a maioria das quais está abandonada hoje. Curiosamente, esse triste destino ocorreu não durante a luta dos bolcheviques contra a religião, na década de 1930, mas durante a crise que se seguiu ao colapso da URSS. A igreja luterana de Jesus Cristo, na vila de Zorkino (perto de Marks), que muitos ainda chamam de Zurique, se safou: não só foi restaurada, mas tornou-se uma das principais lembranças da herança alemã nessas terras.
Sua transformação ocorreu em 2015, graças a Karl Loor, empresário da cidade de Stari Oskol, na região de Belgorod. Seus ancestrais eram da “Zurique russa”, e ele decidiu ajudar sua aldeia natal.
Agora, a igreja é forrada com madeira por dentro, há cultos aos domingos e feriados religiosos, além de recitais de órgão. Perto dali, Loor construiu uma pequena hospedaria.
Esta é, porém, apenas uma igreja restaurada, e a região alemã do Volga tem muitas que ainda aguardam restauração. Por exemplo, ativistas locais na vila de Lipovka - a antiga colônia Schäfer, a duas horas da Zurique russa - estão tentando impedir a destruição de uma antiga igreja que data de 1877. Eles ainda esperam a chegada de um novo Loor ali.
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